Revista Inovação FAPEMA

Autismo: inconsciente ou bioquímica ?

Estudo busca compreender o distanciamento da psicanálise no atendimento a pessoas autistas

O pesquisador afirma que o distanciamento da psicanálise no atendimento a pacientes autistas decorreu de decisões políticas

Marcus Vinicius Soares

raduado em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), integrou o Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre o Nome Próprio e Psicanálise (GEPNPP/UFMA).

Área de pesquisa: psicanálise, sua epistemologia  contemporânea e o

Seis milhões de brasileiros são autistas. A estimativa é baseada no relatório divulgado, em março do ano passado, pelo Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos Estados Unidos. Dentre as várias informações divulgadas no estudo, estima-se que uma, em cada 36 crianças, seria diagnosticada com o transtorno. Isso evidencia a urgência na implementação de políticas públicas e iniciativas que atendam às necessidades específicas desse grupo expressivo de pessoas.

Os números representam milhões de histórias de famílias que lutam para transformar o mundo em um local preparado para os autistas em suas singularidades. No âmbito estadual, o Maranhão se destaca por sua iniciativa em promover a inclusão e a cidadania. A implementação da Lei 11.911, em 2023, por exemplo, garante prioridade no atendimento nos órgãos públicos e estabelecimentos comerciais aos pais ou responsáveis dessas crianças e adolescentes Além disso, o investimento no Centro Especializado de Atendimento ao Adolescente e Adulto com Transtorno do Espectro Autista (TEA) marca um avanço significativo na região Nordeste, oferecendo acompanhamento necessário para o desenvolvimento das habilidades e a promoção da autonomia dos pacientes a partir dos 12 anos.

O esforço governamental garante maior inclusão e assistência aos indivíduos com TEA, mas a verdade é que a literatura científica acerca do transtorno começou a ser escrita há pouco mais de um século. A jornada em direção a uma compreensão completa e inclusiva precisa ser marcada pela empatia e, para isso, é essencial promover uma discussão aberta sobre as melhores abordagens terapêuticas para o autismo, especialmente através da psicoterapia.

Em seu trabalho de conclusão do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), vencedor, na categoria Pesquisador Júnior, do Prêmio FAPEMA 2023, Marcos Vinícius realiza um detalhado estudo bibliográfico sobre o tema. Ele apresenta um panorama da contribuição de psicanalistas na produção de conhecimento, do conjunto de potencialidades que o tratamento oferece e as razões históricas que explicam o distanciamento da psicanálise em questões relativas ao autismo.

De acordo com o autor, apesar das contribuições da psicanálise no estudo do autismo existirem desde a gênese da literatura especializada, a prática no atendimento aos pacientes foi prejudicada por decisões políticas. “A terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III) marca o rompimento da psiquiatria com a etiologia e com as filosofias presentes no campo da psicopatologia, incluindo a psicanálise”, afirma Marcos. “O objetivo era uniformizar as práticas diagnósticas, bem como seus critérios, para que a psiquiatria se tornasse uma ciência independente, integrando-se à medicina científica,” explica.

Ele pontua que o termo “autismo” é resultado de uma leitura de um conceito freudiano. Mas o distanciamento teria se acentuado com a publicação do DSM-IV em 1994 e com a popularização da Prática Baseada em Evidências (PBE), que defendia que a tomada de decisão clínica do terapeuta deveria ser norteada por pesquisas que fornecessem resultados evidentes. Finalmente, em 2013, a quinta edição do Manual Diagnóstico cunhou o termo espectro e oficializou a nomenclatura Transtorno do Espectro Autista (TEA). Para Marcos, a própria definição como transtorno, adotada pelo documento, favorece uma perspectiva biológica e genética. “A indústria farmacêutica, ao fornecer medicamentos para sintomas de explicação neurobiológica, se beneficia de tal conceitualização”, argumenta o pesquisador.

Por um lado, o atendimento e suporte governamental às pessoas autistas vem se expandido, mas essa cisão político-filosófica, decorrente de um processo que ocorreu ao longo de décadas, influenciou gerações de profissionais de saúde e explica a realidade atual. “A partir do momento em que a psicanálise começa a se afastar da construção do DSM e que o manual e a PBE ganham força como norteador do diagnóstico e da prática clínica, a psicanálise perde seu espaço na clínica dos autismos”, explica Marcos.

Apesar de afastados politicamente da tomada de decisões acerca do tratamento, pesquisadores e psicanalistas continuam registrando importantes avanços na compreensão. Em seu estudo bibliográfico, Marcos destaca a contribuição do francês Jean Claude Maleval na literatura especializada da última década, com novas reflexões clínicas sobre o conceito de enclausuramento autístico, que sugerem um novo olhar sobre as razões pelas quais um autista pode evitar o contato social. “O que o autista não suporta é o desejo do outro manifestado em sua direção, ou seja, a marca de um sujeito que, com a sua articulação dos significantes que vem do outro, se dirige ao autista e dele demanda uma resposta”, explica o pesquisador. “Nada é mais angustiante para o autista do que a troca com o outro que carrega a marca do outro. No entanto, essa evitação não é necessariamente da presença, nem do toque. Os autistas só evitam a presença do outro quando algo lhes é demandado”, complementa.

A terapia comportamental vem avançado e a sua abordagem prevê um tratamento que é direcionado, como o próprio nome sugere, aos comportamentos. A psicanálise, de uma forma simplificada, propõe-se a abordar o sujeito através de sua subjetividade e, apesar do consenso de que o autismo afeta cada indivíduo de forma diferente, pouco espaço é dado para a abordagem psicoterapêutica. De acordo com o pesquisador, a psicanálise promove um olhar profundo acerca do subconsciente, que representa tudo aquilo que há de mais particular em cada indivíduo.

Segundo o pesquisador, negar a psicanálise vai muito além de suprimir uma parte do conhecimento especializado sobre o tema, mas significa uma supressão existencial da experiência autista e da compreensão pública acerca do tema. Para Marcos, o contexto político causou um distanciamento que na prática nem precisaria existir. “O sucesso do grupo PBE não depende do fracasso da psicanálise, que orienta suas intervenções em um sentido diferente. A clínica psicanalítica tende a acrescentar positivamente ao tratamento sempre que a melhora do autista for o objetivo verdadeiro. Os autistas, portanto, são os que mais perdem com essa discordância”, avalia.

O estudo de Marcos, assim como o seu reconhecimento, tem o potencial para fomentar reflexões que deem voz ao grande número de especialistas interessados em fornecer contribuições clínicas sobre o tema, bem como a pacientes e famílias que lutam pela oferta do atendimento no Sistema Único de Saúde, planos de saúde e clínicas particulares em todo o Brasil.

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