Pesquisador desenvolveu trabalho etnográfico na área da Psicologia com povo indígena .
Francisco Valberto dos Santos Neto
Mestrado e graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Assessor Técnico do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do Conselho Regional de Psicologia do Maranhão (CRP MA). Pesquisador e apoiador técnico no projeto “Fundamentos para uma psicologia afrocentrada: saberes do tambor de mina”. Atua em pesquisas nos seguintes temas: produção do território existencial do povo indígena Akroá-Gamella, conflitos territoriais no campo, racismo contra os povos indígenas e processos de resistência indígena.
Francisco Valberto dos Santos é um pesquisador, mas antes disso foi um menino que cresceu no Bairro da Liberdade, um dos maiores da cidade de São Luís. Na infância jogou bola na rua e conviveu com várias expressões culturais e religiosas, como o Tambor de Crioula, as festas de terreiro e os blocos afros durante o Carnaval. Essas experiências, para ele, não são apenas boas lembranças da infância, mas elementos indispensáveis à formação da sua identidade: “Essa imagem de conexão dos terreiros da Liberdade com a África por meio dos voduns e orixás sempre me causou um grande sentimento de pertencimento e mistério”, explicou.
Ao ingressar no curso de Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Francisco levou consigo não apenas seus conhecimentos, mas toda a sua identidade construída. Com a sua vivência, foi capaz de perceber rapidamente algo que muitas vezes é ignorado. “Ao longo dos cinco anos na graduação de Psicologia, foram raras as exceções em que conheci temas que não diziam respeito apenas à construção de um sujeito cuja matriz fosse europeia ou estadunidense”, apontou. A necessidade de alternativas a essa perspectiva colonizadora o levou até o Grupo de Pesquisa em Psicologia, Relações Étnico-Raciais e Diversidade (PRETXS) da UFMA. “No PRETXS, as discussões sobre outros modos de composição de existências me abriram caminhos para pensar de uma outra maneira”, prosseguiu.
Até então, essa era a história de Francisco, um pesquisador que, através da sua identidade construída, pôde perceber uma lacuna nos estudos tradicionais da psicologia. Ainda na graduação, iria ocorrer uma identificação de sua história com uma comunidade vítima de um profundo processo de apagamento: os Akroá-Gamella do território Taquaritiua.
O problema que Francisco percebeu quando ingressou na Academia e a história de resistência do povo Akroá-Gamella tem um elemento em comum: ambos são produtos do colonialismo. O mesmo sistema que possibilitou a perseguição, tomada de terras e genocídio dos povos originários também desenvolveu um pensamento científico que tem os povos colonizadores como protagonistas, enquanto invisibiliza a produção de conhecimento por parte dos colonizados. Na pesquisa acadêmica sobre psicologia no Maranhão existem apenas dois trabalhos dedicados com a temática indígena como eixo central: A monografia de Francisco da graduação, escrita em 2018, e a sua dissertação de mestrado. “Ao longo de muitos anos os povos indígenas não estavam na agenda política da Psicologia”, explicou o pesquisador.
A comunidade dos Akroá-Gamella, localizada entre os municípios de Penalva, Matinha e Viana, a 231 km da capital São Luís, conta com uma população de mais de mil pessoas. “Esse povo cruzou séculos resistindo ao processo colonizador, inserindo uma inconstância dentro do projeto de absorção e dissolução dos povos indígenas que impôs uma religião de outro mundo”, explica Francisco. “Houve supressão de modos particulares de existência, interdições linguísticas, guerras e expedições militares para dizímá-los”, prosseguiu.
Há relatos, desde a segunda metade do século XVIII, de tentativas de conversão e tomada das terras dessa comunidade. Em 30 de outubro de 1759 uma carta do rei de Portugal delimitou um espaço reduzido da extensa região habitada pelos nativos, denominada “Terra dos índios”, para que eles ali se fixassem. Entretanto, ele cedeu o resto do território para que beneficiários da coroa pudessem extrair os recursos naturais. Mais de 200 anos depois, na década de 1970, o cerco indevido das terras dos indígenas se acentuou, obrigando-os a se esconder até o passado recente, quando esse povo iniciou um novo processo coletivo de autodeclaração, retomada do território e de resgate da sua existência.
A pesquisa
O principal objetivo do trabalho de Francisco é investigar a produção de subjetividade dos Akroá-Gamella. Além disso, a pesquisa também se propôs a compreender como esse povo operou estratégias de resistência em um contexto de violência contra a sua existência, além de ensaiar possibilidades que confrontassem os pressupostos modernos da psicologia, que “fecha a escuta para outros mundos”, segundo o trabalho do pesquisador.
A metodologia do trabalho consistiu em um estudo etnográfico, com constantes viagens ao território dos Akroá-Gamella. Francisco passou 72 dias entre 2018 e 2019 convivendo com a comunidade. “O processo metodológico foi se desenhando, esquemas foram se desfazendo e cedendo lugar a um processo que estivesse melhor vinculado metodológica e epistemologicamente com os conceitos e análises daquela realidade, lançando um olhar crítico sobre a nossa própria sociedade – a dos não indígenas”, contou o pesquisador.
Para a captação dos dados que seriam utilizados na pesquisa, Francisco se valeu de entrevistas semi-estruturadas que se alongavam ao longo dos dias em longas conversas. A ideia do seu trabalho é de estudar a subjetividade “a partir do outro” e, portanto, foi necessário que o pesquisador evitasse induzir respostas por parte dos entrevistados, o que aconteceria com um questionário mais fechado, já que as perguntas seriam pensadas a partir do ponto de vista do cientista.
Algumas das entrevistas foram gravadas, mas com o tempo Francisco constatou que nem sempre essa era a melhor opção. “Fui percebendo que a gravação das entrevistas dava uma outra forma à narrativa que estava sendo contada, o que comprometia a liberdade de associação do sujeito e reduzia possibilidades que seriam conquistadas sem a presença do gravador”, ressaltou o pesquisador. Além disso, para complementar essas informações, fez-se necessária a elaboração de um diário de campo.
Com os estudos do mestrado, relatos da comunidade e suas próprias experiências, Francisco pôde observar aos poucos como o estudo da psicologia e da subjetividade dos grandes autores da academia era insuficiente para entender as relações humanas fora do eixo colonizador. “Uma das grandes preocupações da Psicologia é o estudo da subjetividade, compreendendo o modo pelo qual as pessoas produzem relações consigo e com o mundo”, explicou. “Historicamente a Psicologia compreende a subjetividade como pertencente única e exclusivamente a humanos”, prosseguiu. “Mas o que aconteceria se a subjetividade estivesse estendida a outros seres, como rios, árvores, florestas, animais?”, questionou.
Observando o mundo pelas lentes do povo Akroá Gamella, o que se encontra é um mundo de subjetividades em que o ser humano é apenas mais um dentre várias. E esse entendimento faz com que a relação que eles têm com a terra, a floresta e os rios seja profundamente diferente da sociedade dos “não indígenas”. Cada um desses elementos deixa de ser um objeto e passa a ser tratado como sujeito, dotado de subjetividade, movimento e expressões. Mais do que isso, esse entendimento transforma a relação do ser humano com o ambiente em volta. “A terra, as florestas e os rios são como um grande corpo territorial que se entrelaça com o corpo dos indígenas”, explicou Francisco. “A terra é o corpo dos indígenas e os indígenas são parte do corpo da terra”, complementou. Se um é parte do outro, logo a retirada desses povos da sua terra é mais do que a usurpação do local em que eles vivem, é uma violência que ameaça a própria existência deles enquanto sujeitos.
O trabalho de Francisco foi apoiado pela Fapema, por meio de bolsa de mestrado. Segundo o pesquisador, o investimento da Fundação foi fundamental para a execução da sua pesquisa. “Compreendo essa importância em um lugar social, de distribuição de renda, de apoio financeiro para que pesquisadores se dediquem na produção de intervenções que estejam vinculadas direta ou indiretamente em um processo contra as desigualdades”, concluiu o pesquisador.
O pesquisador e a FAPEMA estão de parabéns! É um eixo na psicologia que deveria ser mais explorado por ser extremamente necessário para a melhor compreensão, apoio e respeito aos povos indígenas.