Pesquisa debate, também, os perigos da leitura superficial, da desinformação e da ausência de criticidade
Dulce Hirli Almeida
Doutoranda em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Ciência e Tecnologia (IBICT) em convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde concluiu o mestrado na mesma área. Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Foi bolsista de Iniciação Científica da FAPEMA/CNPQ e do Programa de Educação Tutorial de Biblioteconomia (UFMA). Integra o Grupo de Pesquisa Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social (ESCRITOS).
Discutir os impactos da cultura do cancelamento promovida nas redes sociais e analisar os motivos que levam essa prática a crescer. Esse é o objetivo da pesquisa “Cultura do cancelamento nas plataformas sociodigitais: análise do discurso no Twitter Brasil” desenvolvida por Dulce Hirli Costa Almeida. A investigação foi realizada durante o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) em convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De acordo com a pesquisa, a cultura do cancelamento, embora não possua uma definição unânime, trata-se de um fenômeno em que pessoas ou organizações são criticadas em massa, especialmente em redes sociais digitais como uma sanção para alguém com discurso ou conduta reprovável socialmente. Elas sofrem punições de grupos de pessoas por meio de exposição negativa, boicote, humilhação, ataques massivos e linchamentos virtuais por terem, supostamente, violado alguma norma social. A prática ocorre, também, quando alguém adota uma postura contrária à opinião ou preferência de certos grupos sociais ou, até mesmo, por se manter em silêncio diante de temas públicos, frequentemente polêmicos.
De acordo com Dulce, trata-se de um assunto relativamente pouco estudado no âmbito da Ciência da Informação. “A maioria das pesquisas científicas existentes sobre o tema é da realidade estadunidense e tratam a cultura do cancelamento de modo simplista”, relata.
“Eu analisei o regime de informação em que as redes sociodigitais estão submetidas, abordando capitalismo de dados, cultura algorítmica, sociedade do espetáculo e como se estruturam os discursos na cultura do cancelamento”, informa a pesquisadora.
“A pesquisa demonstrou que o cancelamento é um fenômeno atual e difuso e, ao mesmo tempo em que serve para possibilitar vozes à maioria minorizadas, pode se tonar um linchamento virtual”, afirma a pesquisadora.
A cultura do cancelamento pode ser comparada aos linchamentos públicos, sem qualquer julgamento ou possibilidade de debate. De acordo com a pesquisadora, isso demonstra o caráter autoritário da cultura do cancelamento. “O ‘tribunal da internet’ é quem decide a sentença e nela o indivíduo é sempre culpado”, destaca.
Ainda de acordo com a pesquisadora, os escândalos e discursos de ódio impulsionam perfis e veículos de mídia, que lucram com o tráfego online. “A publicidade programática é a fonte de renda da plataforma, fazendo com que aconteça a retroalimentação de culturas como o cancelamento”, aponta.
“É preciso filtrar a quantidade e a qualidade das informações que nos bombardeiam”, recomenda. “Isso implica em assumir uma postura crítica, em que se deve questionar as motivações, a veracidade e a procedência das informações”, avalia.
“As plataformas sociodigitais, apesar de defenderem a ‘missão’ de aproximar as pessoas, facilitar processos e romper barreiras informacionais, também criam muros nesses ambientes”, afirma. Exemplos disso são os “filtro-bolhas, a permissão de perfis falsos, a concessão de maior alcance de uns usuários em detrimento de outros, a impunidade de crimes digitais e a promoção de culturas de ódio, como é o caso da cultura do cancelamento”, ressalta.
“Acredito que estudar sobre a cultura do cancelamento na Ciência da Informação traz um benefício macro pra sociedade porque precisamos entender os fenômenos que cercam nossa contemporaneidade e utilizá-los em nosso favor”, destaca Dulce.
A pesquisa descreve ainda outras facetas prejudiciais como a espiral do silêncio (fenômeno social de desencorajamento moral ao posicionamento individual); a formação de rebanhos identitários por meio de conexões em rede e a sociedade do espetáculo (o parecer é maior que o ter, que é maior que o ser).
Também são abordados o ‘mimimi’ (representação de choro, que se configura como uma espécie de coação que visa deslegitimar opiniões); a lacração (que atua prejudicando o diálogo, pois silencia a opinião do outro e impede a cadeia comunicativa), o exposed (prática de humilhação pública, com divulgação de mensagens, vídeos ou fotos comprometedoras) e a sonegação de informação.
“É sob esse signo de sonegação de informação que a cultura do cancelamento opera para desinformar de forma sutil e feroz”, aponta a pesquisadora. “O medo do ostracismo pode fazer com que pessoas deixem de expressar sua opinião e se autocensurem”, avalia.
Metodologia
A pesquisa começou a ser pensada ainda em 2021, mas o seu desenvolvimento só iniciou em 2022. Atualmente a pesquisa avança para a fase doutoral, em que a pesquisadora pretende focar nos discursos de ódio presentes nas plataformas sociodigitais e analisar as ações que estão sendo feitas na comunidade escolar para combatê-los. “Os discursos de ódio são apenas uma das nuanças da cultura do cancelamento, o que indica que ainda temos muito trabalho pela frente”, avalia a pesquisadora.
A pesquisa se iniciou com um estudo exploratório, com levantamento bibliográfico envolvendo autores que estudam a informação como poder, a teoria crítica, regime de informação e as plataformas sociodigitais. Foram utilizadas as obras de Marx, Foucault, Guy Debord, Bauman, da professora Maria Nélida González de Gómez, do economista Bertin Martens, de Shoshana Zuboff, de Morgan English, de Pippa Norris e de Arthur Coelho Bezerra.
Foi realizado um monitoramento dos trending topics Brasil no período de abril a novembro de 2022, para selecionar a partir do Twitter o caso de cancelamento a ser estudado. Alguns casos foram selecionados e enviados para o Laboratório em Rede de Humanidades Digitais (LARHUD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). “Por meio de software próprio (o Twitter Monitor) ele realizava e me enviava os datasets, em que eu filtrei os dados que me interessavam na pesquisa”, informa Dulce.
“Eu decidi fazer um estudo de caso por meio da análise de discurso bakhtniana”, informa. Os tweets foram caracterizados, em um primeiro nível, como tweets que continham discurso de ódio; de pessoas neutras no assunto; a favor e contra o cancelado e de exposed. “Depois eu os classifiquei em signos do cancelamento que são o “mimimi”, a lacração, a desinformação e o exposed”, prossegue. A pesquisadora avaliou o caso do cancelamento do cantor sertanejo Zé Neto, com a coleta de 11.092 tweets e análise de 372 por meio do conjunto escrita e visual. “Identificamos a ocorrência de curtidas, memes, vídeos, gifs, imagens, emojis, threads, hashtags, abreviações, a mescla de idiomas, gírias e a linguagem utilizada no Twitter”, comenta.
Para o futuro, a ideia da pesquisadora é estudar a cultura do cancelamento sob a perspectiva da competência crítica da informação, com alunos do Ensino Médio. “O objetivo é despertar a criticidade desses alunos no ambiente das plataformas sociodigitais e fazer isso juntamente com a comunidade escolar”, afirma. “Espero, com isso que os casos de discurso de ódio, intolerância, bullying e atentados nas escolas sejam minimizados”, pontua.
“Entendo que os profissionais que lidam com a informação devem contribuir para a criticidade do usuário nos mais diversos espaços informacionais, inclusive nas redes sociais onde a cultura do cancelamento tem crescido de forma desenfreada”, destaca.
“É preciso levar o conhecimento para a sociedade e tenho buscado fazer isso, tanto avançando com a pesquisa para o doutorado como divulgando os achados da pesquisa”, ressalta. “No âmbito pessoal, é uma realização ter concluído o mestrado em um Programa que é uma grande referência nessa área”, afirma. Ela irá divulgar os resultados da pesquisa no XIII Seminário Hispano-Brasileiro de Pesquisa em Informação, Documentação e Sociedade que vai acontecer na Espanha, neste ano, na Universidad Complutense de Madrid.
A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), por meio do Edital 03/2022 (Bolsas de Mestrado no país). “O financiamento foi primordial para que a pesquisa acontecesse”, afirma. “Esse tipo de fomento contribui para que o pesquisador consiga se dedicar com exclusividade para a sua pesquisa, impulsiona a ciência brasileira e oportuniza a educação continuada dos pesquisadores maranhenses”, prossegue.
O trabalho contou com a orientação cientifica do professor Arthur Coelho Bezerra, doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Ele foi fundamental para o estudo”, avalia. “Eu conheci o seu trabalho durante a Escola de Verão do IBICT de 2021 e ali tive certeza de que havia encontrado o orientador ideal para a pesquisa”, prossegue. “O professor Arthur tem uma vasta e rica produção sobre o novo regime de informação e a competência crítica em informação”, continua. “O seu olhar contribuiu para a pesquisa não focasse apenas no aspecto técnico quantitativo e auxiliou durante todo o percurso do estudo, desde orientações científicas até disciplinas que deveriam ser feitas para o enriquecimento da discussão”, afirma.
“Foi uma parceria que deu tão certo que está sendo continuada no doutorado”, diz. ”Abordar a cultura do cancelamento sofre com diversas limitações e é complexo abordar um tema novo em que se tem pouca literatura a respeito e depender da transparência da plataforma X, que sob o comando de Elon Musk se fechou mais ainda, dificultando bastante a coleta”, pontua. “Além disso, não saber quem está por trás das páginas impossibilita traçar o perfil dos canceladores”, conclui.