Revista Inovação FAPEMA

OLHARES CRUZADOS: UNIVERSIDADE E PRISÃO EM DIÁLOGO

Projeto aproxima a universidade da experiência direta de pessoas que passaram pelo sistema prisional

O projeto organiza cursos, oficinas, seminários e atividades formativas que combinam conteúdo teórico e vivências práticas.

Rafael Godoi

Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), onde graduou-se em Ciências Sociais. Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Departamento de Sociologia da USP. Especialização em Investigação Etnográfica, Teoria Antropológica e Relações Interculturais na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB). Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Criminológicos da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), com atuação docente, também, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional e no Departamento de Ciências Sociais. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (UFRJ). Áreas de interesse: sociologia urbana, teoria sociológica e métodos qualitativos de pesquisa.

O Brasil enfrenta um quadro de encarceramento em massa, com mais de 900 mil pessoas privadas de liberdade, número que supera a capacidade do sistema penitenciário. Mais do que comemorar a prisão de supostos párias da sociedade, a comunidade científica aponta que o encarceramento em massa é um sintoma de uma doença social profunda. Problemas como pobreza, desigualdade racial, exclusão educacional e falta de políticas públicas consistentes se manifestam nas grades das penitenciárias

A maioria dos presos é homem (cerca de 94%) e, alarmantemente, aproximadamente 70% são negros, refletindo um racismo estrutural que atravessa o sistema penal. Dentre eles, quase 30% estão em prisão provisória, aguardando julgamento, vivendo sob a sombra de uma punição antecipada. O déficit de vagas, a superlotação e as condições precárias de higiene, saúde e segurança colocam em xeque a ideia de que a prisão seria apenas um instrumento de justiça.

É nesse contexto que surge o projeto de extensão universitária “Outra Visão”, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico (FAPEMA), que propõe uma abordagem inovadora: aproximar a universidade da experiência direta de pessoas que passaram pelo sistema prisional, promovendo o diálogo entre saberes acadêmicos e comunitários.

O projeto busca reinventar o próprio conceito de extensão universitária. “Em vez de um fluxo unidirecional de conhecimento, há um encontro ativo entre universidade e comunidade, no qual as experiências vividas por pessoas privadas de liberdade se tornam parte central da produção de saber”, explica professor Rafael Godoi da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) que coordena o projeto. “Estamos apostando nesse encontro entre universidade e comunidade para pensar novas formas de promover justiça e segurança”, prossegue.

Em vez de uma abordagem unidirecional, na qual a universidade produz conhecimento e o transfere à comunidade, a metodologia do projeto valoriza a experiência direta de pessoas privadas de liberdade, reconhecendo esses saberes como estratégicos para pensar políticas de justiça e segurança pública.

Segundo Rafael Godoi, o conhecimento não se produz apenas na universidade. “Ele surge no diálogo, no encontro de diferentes experiências”, afirma. “Ignorar essas vozes não funciona”, complementa. “Nossa metodologia parte do princípio de que cada participante, cada experiência, é fonte de aprendizado e reflexão crítica”, ressalta.

Na prática, o projeto organiza cursos, oficinas, seminários e atividades formativas que combinam conteúdo teórico e vivências práticas. Cada atividade é pensada para estimular o protagonismo dos participantes, permitindo que compartilhem suas histórias, discutam conceitos de justiça e reflitam sobre alternativas ao encarceramento massivo.

Uma característica central da metodologia é a interdisciplinaridade. Pesquisadores de diversas áreas – Direito, Sociologia, Psicologia, Educação e Segurança Pública – atuam em conjunto, promovendo um diálogo que ultrapassa fronteiras acadêmicas e integra diferentes perspectivas sobre justiça e reinserção social.

O professor Rafael Godoi (último à direita) coordena o Programa de Mestrado em Estudos Criminológicos da Universidade Estadual do Maranhão

Internacionalização 

O projeto Outra Visão busca ir além das fronteiras brasileiras, mantendo parcerias com universidades e instituições de outros países, incluindo experiências na Europa e América Latina, que trabalham com justiça restaurativa, reinserção social e inovação em políticas penitenciárias. Para Rafael Godoi, essas parcerias são estratégicas: “Elas permitem comparar diferentes modelos de justiça e aprender com práticas que se mostraram eficazes em contextos diversos”, destaca. “É uma forma de trazer inovação para o nosso sistema prisional”, pontua.

Mais do que importar soluções, as conexões internacionais fortalecem a capacidade crítica do projeto. “Ao observar como outros países lidam com encarceramento e segurança pública, conseguimos problematizar nossas próprias práticas e identificar lacunas que poderiam passar despercebidas”, explica Godoy. “Esse olhar externo é essencial para repensar políticas públicas de forma mais inclusiva e eficaz”, avalia.

A internacionalização também promove um aprendizado mútuo. Não se trata apenas de receber conhecimento, mas de compartilhar as experiências brasileiras com parceiros estrangeiros. “O aprendizado é mútuo pois, ao compartilhar nossos métodos e práticas, contribuímos para uma reflexão global sobre justiça, segurança e extensão universitária”, afirma o pesquisador. “Esse intercâmbio fortalece o projeto e amplia o impacto social do trabalho”, ressalta.

Impactos e perspectivas 

Para o pesquisador Rafael Godoi, a abordagem do projeto é transformadora e estratégica. Ele enfatiza que um dos fundamentos centrais é valorizar o conhecimento produzido na experiência da privação de liberdade. “Ignorar esses saberes, como vem sendo feito há décadas ou séculos, não funciona, estamos apostando nesse encontro entre universidade e comunidade para pensar novas formas de promover justiça e segurança”, explica.

Os impactos do Outra Visão vão além do aprendizado acadêmico. Participantes relatam resgate da dignidade e da esperança, muitas vezes ausentes em instituições prisionais superlotadas. Cada curso, oficina e diálogo promovido pelo projeto gera insumos para pensar alternativas mais humanas e eficazes para a segurança pública.

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