Dissertação premiada evidencia as limitações da imprensa na cobertura de pautas raciais
Ariel da Rocha
Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Imperatriz, onde se graduou em Comunicação Social/Jornalismo.
Integra o Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cibercultura (UFMA), onde desenvolve pesquisas sobre fontes jornalísticas, títulos jornalísticos e transformações nas rotinas produtivas motivadas pelas tecnologias digitais.
Foi bolsista permanente no Grupo de Pesquisa em Convergência e Narrativas Audiovisuais (UFMA), entre 2016 a 2018, e participou dos grupos de pesquisa Dinâmicas do Jornalismo (2016) e Comunicação, Política e Sociedade (2017/2019).
Foi pesquisadora voluntária no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Integra equipe da Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Imperatriz.
O jornalismo deve oferecer ao público o direito básico de acesso à informação, com um texto objetivo. Porém, a legitimidade da imprensa não está baseada na imparcialidade. Na realidade, por muito tempo, acreditou-se que uma boa reportagem seria aquela livre de visões pessoais, para garantir a legitimidade da imprensa em sua função de fornecedora de informações confiáveis para a sociedade.
Porém, a verdade é que o jornalismo é uma prática subjetiva, tendo em vista que os profissionais, para transformarem um “fato” em uma “notícia”, realizam uma série de escolhas… Que fontes são importantes? Que informações são relevantes e quais podem ser ignoradas? Essas são algumas indagações de qualquer jornalista que, ao realizar a escolha da pauta, adota uma postura também subjetiva. Afinal, tudo que acontece é um fato, mas, ao definir o que é um fato jornalístico digno de reportagem, o profissional decide baseado no que considera importante, a partir de uma indissociável da visão de mundo.
Estudos modernos sugerem uma autonomia do receptor da informação que, de forma geral, tem consciência das tendências ideológicas do conteúdo jornalístico. Com a internet, por exemplo, o contato se efetiva com um público engajado, de fortes convicções que dificilmente seriam abaladas por uma reportagem involuntariamente tendenciosa.
Assim, à medida que a sociedade e o jornalismo evoluíram, a percepção sobre o tema também evoluiu. Hoje se respeita mais o senso crítico de leitores e espectadores e a imparcialidade passou a ser uma bússola moral. É impossível escrever sem deixar “rastros” da individualidade do autor, mas deve-se trabalhar por um texto que seja o mais imparcial possível, por meio de uma linguagem clara e objetiva, com transparência e ética na condução de um processo de apuração, escutando e contemplando, no texto final, o maior número de vozes.
Sobre a questão, a jornalista e pesquisadora Ariel Santos da Rocha nutre uma inquietação desde o começo de sua formação acadêmica. “Durante a minha graduação em comunicação social, nas disciplinas e estudos relacionados às rotinas produtivas, pouco se discutia a respeito da representatividade e da pluralidade no jornalismo”, conta a comunicadora. Ao identificar essa lacuna no currículo obrigatório, Ariel alimentou seu repertório teórico em reuniões de grupos de pesquisa e debates extraclasse. “A meu ver, não havia uma preocupação central em debater esses temas de maneira mais intensa e penso que a questão merece um olhar mais atencioso das universidades para que nossa formação seja sensibilizada e crítica”, aponta.
No mestrado em Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Ariel uniu o interesse por debates acerca da pluralidade no jornalismo com um referencial teórico direcionado à análise de títulos e fontes em reportagens. “Se toda reportagem fosse uma casa, o título seria a porta para entrar e as fontes o chão: enquanto o primeiro sintetiza todo o texto e ‘convida’ o leitor para dentro, o segundo é o que sustenta todo o conteúdo”, afirma.
Em sua dissertação, Ariel se debruçou sobre 19 anos de produção jornalística do então maior jornal em circulação do Maranhão, bem como sobre um grande portal de notícias da região, sobre a temática do Dia da Consciência Negra. Comemorada em 20 de novembro desde 1971, tendo integrado o calendário oficial do país há 13 anos, a data escolhida é relativa ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do Brasil e ícone do imaginário popular antirracista. A escolha da data foi uma iniciativa política de movimentos sociais para que a data central de discussões acerca de igualdade racial e combate ao racismo deixasse de ser 13 de maio, data que marca o aniversário de assinatura da abolição da escravatura.
Trata-se de decisão que evidencia uma leitura crítica de um momento histórico que, por muito tempo, foi mistificado. O 13 de maio é uma data que destaca, como ponto central, a assinatura de um documento por uma aristocrata branca, enquanto invisibiliza uma infinidade de pessoas que tiveram os ancestrais sequestrados de suas terras natais para enriquecer essa mesma aristocracia.
A narrativa da princesa Isabel, como ícone de combate ao racismo, é apenas isso: uma narrativa. A realidade dos fatos é que a escravidão institucionalizada deixou de ser rentável e o modo de produção capitalista, através da exploração do trabalho assalariado, passou a ser o método mais eficiente para enriquecer nobres e burgueses. Se o interesse por trás da legislação fosse alcançar qualquer tipo de justiça social, ela também deveria prever reparações históricas e condições para que os negros livres pudessem viver em condições de igualdade de direitos e oportunidades, o que não foi o caso. A reinvindicação de Zumbi, no lugar de Isabel, demonstra a importância central da representatividade e do protagonismo negro na luta antirracista. É uma mensagem clara dos movimentos sociais acerca de quais símbolos devem ser promovidos e quais vozes devem ser ouvidas.
Infelizmente, o levantamento de Ariel mostra uma imprensa desinteressada acerca do tema e desconectada dos anseios da sociedade. Das 94 reportagens escolhidas entre 2002 e 2021, apenas 69 (52.1%) consistiram em produções próprias acerca do tema. O restante do material foi identificado apenas como reprodução de conteúdo de terceiros, com um grande enfoque no relato de eventos e agendas factuais, com uma preocupação superficial em demarcar a existência da data, evitando produções mais aprofundadas que abordassem a temática de forma crítica.
A partir das matérias autorais dos veículos, Ariel identificou que apenas 39% das fontes escolhidas foram humanas e quase dois terços das “vozes” são oriundas de instituições, coletivos, documentos e fontes empresariais. Para Ariel, essa escolha é ideológica e prejudica o conteúdo produzido. “O grande número de não-pessoas como fontes é resultado de uma cobertura preocupada em relatar eventos e atividades factuais. O resultado é um conteúdo pobre em humanidade e em relatos de personagens, o que coloca o negro para ser mencionado sempre a partir de instituições, em terceira pessoa”, explica a pesquisadora. Ela identificou, em seu trabalho, que apenas 5.79% dos relatos escolhidos como fontes foram pessoas comuns. “A cobertura não fala sobre a vivência da população negra de forma mais completa, centralizando-a através de fontes populares. Na data, não há lugar para voz do cidadão, que fica reservado apenas a casos excepcionais, em relatos de crimes de racismo sofridos por cidadãos negros e para exemplificar a pessoa negra como superadora de dificuldades”, complementa Ariel.
A participação de figuras públicas ligadas ao movimento negro e outros movimentos sociais como fontes existe, mas essas vozes não são tão bem aproveitadas quanto deveriam, segundo a pesquisadora. “A repetição das fontes escolhidas, assim como a exploração limitada delas para além de eventos factuais, mostram que a sua presença marca apenas um tipo de protocolo. O quadro é contrário aos dados populacionais do Maranhão, que mostram um estado composto, em maioria, por autodeclarados negros e pardos”, pontua.
O levantamento de Ariel acerca da cobertura do 20 de novembro evidencia uma imprensa desinteressada em pautar a luta contra o racismo de forma crítica e em promover vozes negras para além de um simples jornalismo declaratório e superficial. Para a pesquisadora, isso é explicado por uma série de fatores. “Não é um problema exclusivo da rotina produtiva dos veículos, pois o imaginário social acerca do tema é muito desvalorizado. É preciso que se voltem os olhares para a realidade do povo maranhense, para que a cobertura evidencie questões centrais às vivências comuns do cidadão”, explica a jornalista. Ela justifica a importância de uma cobertura crítica com um convite à reflexão. “Se considerarmos que a data tem o objetivo de construir uma representação positiva, empenhar a valorização de toda a cultura negra e promover um espaço de reconhecimento da história do povo e, mesmo assim, a cobertura midiática deixa a desejar, o que se esperar de outras coberturas acerca do tema durante o ano?” indaga Ariel, que conquistou o Prêmio FAPEMA 2023, na categoria Dissertação de Mestrado.
Se a escolha de fontes é um processo de escolha de vozes baseadas nos valores dos jornalistas que escrevem e produzem matérias, como garantir que essa escolha promova a pluralidade de vozes e uma leitura crítica e completa da realidade que paute discussões de interesse público?
A solução passa por uma maior representatividade racial nas redações e em espaços de poder na mídia tradicional.
Mesmo que tenha a terceira maior proporção de negros do Brasil em sua população (74% segundo o censo do IBGE de 2010), o Maranhão, assim como o resto do país, enfrenta problemas derivados de séculos de desigualdade racial. Apenas 28% da população negra do estado, entre 18 e 24 anos, está matriculada em alguma instituição de ensino e a juventude negra é a mais vulnerável a abandonar os estudos para trabalhar desde cedo. Um branco possui mais condições de se qualificar profissionalmente e, mesmo se comparado a trabalhadores negros de currículo equivalente, ainda ganha um salário que em média é 36% maior.
O resultado disso é um mercado de trabalho especializado de maioria branca, inclusive no jornalismo e isso prejudica a própria integridade do trabalho. O objetivo do jornalismo é o de oferecer o relato mais completo possível da realidade e, à medida que a prática evolui, fica cada vez mais claro que a objetividade só é alcançada através da valorização de todas as subjetividades que se atravessam. E, para isso, é essencial que as redações e espaços de tomadas de decisão da mídia sejam os mais diversos e plurais possíveis.