Trabalho se propõe a embasar apoio público para que a categoria conquiste mais direitos

Wemmelly Coimbra
Acadêmica do curso de Aquicultura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) Campus São Luís Maracanã. Integra o Núcleo de Maricultura (NUMAR), onde desenvolve pesquisas como bolsista e voluntária nas áreas de malacocultura, piscicultura e etnoconhecimento com comunidades tradicionais
O Maranhão abriga a maior extensão de manguezais de todo o Brasil – bioma que desempenha papel fundamental no ecossistema, contribuindo para redução de CO2 na atmosfera. Ele também protege o litoral de tempestades e de elevações do nível do mar e abriga espécies de moluscos fundamentais para o preparo de farofas, moquecas e diversos outros pratos típicos da culinária maranhense – um dos principais atrativos turísticos do estado.
A cadeia produtiva vinculada aos manguezais resulta em itens gastronômicos enraizados na vida de quem mora no Maranhão e que encantam o paladar daqueles que o visitam. Tudo isso é possível com a colaboração de uma série de atores que retiram os moluscos do seu habitat, transportam até os pontos de venda e preparam os alimentos que são servidos nas mesas das famílias e em restaurantes por todo o estado.
A pesca em pequena escala, realizada em São Luís, Paço do Lumiar e São José de Ribamar, é fruto do trabalho diário de comunidades marginalizadas que moram no entorno dos ecossistemas, longe dos centros urbanos em que se encontram as feiras e restaurantes visitados por turistas e pela população local. A distância isola essas comunidades, dificultando o acesso a políticas públicas adequadas.
Na falta de informações atualizadas sobre essas famílias, os pesquisadores se tornam grandes aliados das comunidades e do estado. Wemmelly Coimbra, do Instituto Federal do Maranhão, entrevistou 108 catadores de tarioba (Iphigenia brasiliensis) durante trabalho de campo do Núcleo de Maricultura do IFMA Campus Maracanã, oferecendo dados relevantes sobre seu perfil socioeconômico e os principais métodos de coleta. A abrangência da pesquisa e a qualidade dos dados obtidos foram recompensadas na última edição do prêmio FAPEMA, em que Wemmelly e sua orientadora Izabel Funo conquistaram o troféu na categoria Pesquisador Júnior.
Metodologia
Para a obtenção dos dados, Wemmelly realizou 28 viagens, entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022 (7 em Raposa, 9 em são José de Ribamar, 7 em Paço do Lumiar e 5 em São Luís) e aplicou questionários sobre gênero, renda de pesca, idade, educação e meios de subsistência alternativos. Além disso, a pesquisa registrou informações sobre a duração da extração, as ferramentas utilizadas para coleta, conhecimento sobre a espécie, o habitat e a comercialização.
A pesquisadora explica que existem poucos estudos voltados à pesca dessa espécie de molusco, o que faz com que o conhecimento transmitido através de gerações seja fundamental para entender a prática. “A coleta dessas informações é essencial para o planejamento de diretrizes adequadas de manejo sustentáveis dos bancos naturais e para embasar políticas públicas destinadas à comunidade local”, explica Wemmelly.
Perfil dos trabalhadores
Os resultados da pesquisa desenham o perfil médio do pescador da tarioba. Majoritariamente homens, entre 11 e 22 anos, desempenham o trabalho braçal desde os dois anos de idade até os 58 anos de suas vidas. Em troca, recebem alimentos para consumo próprio e uma remuneração média que mal garante a sobrevivência. “Pela falta de oportunidades de emprego, a mariscagem se torna uma atividade de longa duração que atrai a comunidade local”, explica Wemmelly.
Apesar de vulneráveis e muitas vezes isolados, nem todos os trabalhadores buscam a organização política como ferramenta para a valorização da categoria e conquista de direitos. pesar de 100% dos catadores de São Luís estarem associados à colônia de pescadores local, o número cai drasticamente quando se observa a realidade dos outros municípios. Apenas 25% dos entrevistados em São José do Ribamar e 11.5% em Paço de Lumiar possuem afiliação a entidades representativas. Na Raposa o índice se reduz a zero.
Comércio e “negociação” do produto
Para que o produto coletado chegue até os centros urbanos, ele passa na maioria das vezes por atravessadores, que compram o marisco dos coletores e vendem para os feirantes. Esses compradores são as principais fontes de renda para os pescadores, mas a realidade material da cadeia produtiva determina uma lógica desigual.
Sem cooperativas e associações organizadas fortes, a classe de catadores não tem força para impor melhores condições de venda e preço justo. Assim, a necessidade da renda mínima para sobreviver limita o poder de negociação e os deixa reféns de negociações desvantajosas, obtendo a menor parte do lucro, apesar de realizarem a etapa mais árdua do processo.
Sem contato direto com o feirante ou o consumidor final e sem infraestrutura adequada para transporte e armazenamento, a situação piora ainda mais. Os dados obtidos sobre os pescadores são um primeiro passo importante para visibilizar o problema e balizar políticas públicas direcionadas. “Para garantir uma lucratividade sustentável para os trabalhadores são necessárias ações para fortalecer a cadeia, facilitar a comunicação com os consumidores e melhorar as condições de trabalho e higiene”, avalia Wemmelly. “Tudo isso pode contribuir para que o consumo seja mais atrativo, valorizando a matéria-prima e incrementando a renda dos pescadores”, complementa.
Etnoconhecimento: ciência oral e ancestral
O trabalho de Wemmelly integra uma área interdisciplinar da ciência chamada ‘etnoconhecimento’, que visa coletar o conhecimento tradicional transmitido de forma oral e busca compreender como cada grupo étnico desenvolve saberes únicos baseados em sua história, ambiente e cosmovisão.
A pesquisa da estudante do IFMA foi importante para compreender o método desenvolvido pelos pescadores e a forma pelo qual o conhecimento é transmitido. Mais de 80% dos entrevistados aprenderam a arte da pesca com familiares ou amigos.
A história dos marisqueiros reflete a gênese da transmissão de conhecimento que é observada em toda a história da humanidade. Antes mesmo de existirem alfabetos e métodos de escrita, a sobrevivência e efetividade dos grupos era definida através de uma memória coletiva mantida, expandida e transmitida através dos anos, por meio da comunicação oral entre seus membros, a partir de informações baseadas na observação de fenômenos naturais.
Com a pesquisa, restou demonstrado que a aprendizagem e a transmissão oral convergem para o conhecimento acadêmico: as coletas são realizadas em períodos de seca, quando a variação de maré e de vento aumentam as áreas exploráveis. Além disso, épocas de chuva costumam ser evitadas, já que esses animais são sensíveis às mudanças resultantes da precipitação de água doce. Isso dificulta a sua sobrevivência e estimula processos migratórios, diminuindo a população de moluscos nas áreas em que os pescadores têm acesso.
Outra informação importante obtida junto aos pescadores se refere ao método de captura: a tarioba é coletada com as mãos ou com a utilização de utensílios simples como bastões. Além disso, há uma preocupação com a manutenção da população do molusco, visto que os animais jovens são retornados ao estuário para que possam se desenvolver e reproduzir. Isso aponta uma preocupação com a manutenção do bioma e a sustentabilidade.
Para Wemmelly, o estudo atesta a validade do conhecimento tradicional e valoriza as comunidades: “Adoro ter este contato direto com as comunidades tradicionais para vivenciar de perto um trabalho que admiro e que é meu principal objeto de pesquisa”, afirma.” Acredito que sem o etnoconhecimento não existiria o que entendemos hoje como conhecimento científico”, pontua. “A admiração que sinto por eles me motiva a seguir pesquisando sobre o tema”, explica a pesquisadora.
Entretanto, no processo produtivo, apesar de cada ator desempenhar um papel fundamental e interdependente, o lucro é repartido de forma desigual em que o mais prejudicado é justamente aquele responsável pelo trabalho braçal de retirada dos animais nos mangues. Além disso, mesmo que o resultado do trabalho desenvolvido seja um produto valioso para a economia, a renda de quem coleta mal é suficiente para a subsistência.
Nesse sentido Wemmelly tem preocupação que ultrapassa o ‘etnoconhecimento’. “Desejo que o meu trabalho sirva para que mais pessoas conheçam a história dos marisqueiros e que isso se converta em apoio público essencial para que a categoria conquiste mais direitos”, conclui.